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ARTIGO: Memórias de outrora: O bairro onde a horta morava

“Não há contracolonização sem replantar os afetos que o progresso arrancou”.

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“A horta era mais que planta: era conversa, memória e raiz. Quando tiraram isso, o bairro perdeu o verde e a voz”.

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Ninguém perguntou se a horta queria sair dali. Um dia, chegaram as máquinas, os caminhões e os homens de colete. E o que era verde virou pó. O chão, antes coberto de temperos, risadas e enxadas comunitárias, amanheceu riscado por estacas e lonas. Disseram que ali nasceria um “novo bairro”, com nome bonito, desses que lembram o que já não existe. Ironia das grandes.

O pessoal que morava ali por perto sentiu um vazio. Não era só o sumiço das plantas, era o silêncio que ficou depois delas. Porque a horta também tinha voz: o barulho das folhas, o cheiro de manjericão no ar, o burburinho das conversas entre vizinhos trocando sementes, histórias e risadas. Era o refúgio, o lugar onde o trabalho se misturava com o afeto, onde cada alface era um gesto de esperança.

Mas o progresso chegou sem bater à porta, sem consulta, sem conversa.
E em meio a tudo isso, uma citação de Ailton Krenak, vale a pena: “Esquecer que somos natureza é esquecer de nós mesmos”.

Aquela horta não era só “área de cultivo urbano”, era parente.
Era o que Krenak chama de “florestania”, “o direito de viver com a terra e não apesar dela”.

Agora, no lugar da horta, há ruas retas demais, árvores de muda comprada, jardins idênticos, sem alma. Tudo cercado por grades, tudo silencioso demais.

Alguns moradores ainda lembram do tempo em que o cheiro de coentro se misturava ao das flores e o barulho do regador soava como reza de fim de tarde. Mas o costume da pressa, esse colonizador moderno, convenceu muita gente de que progresso é isso mesmo: calar a terra pra ouvir o motor.

Só que há quem resista! Como ensina Nego Bispo, liderança quilombola, é hora de fazer a contracolonização: plantar de novo, reocupar com afeto o que o concreto desalojou. Relembrar que o chão tem memória e que a terra, quando respeitada, devolve o que é vivo. E talvez, lembrar que as palavras “envolver” e “compartilhar” são necessárias nesse tempo de (des) envolver e individualizar.

Quem sabe um dia as crianças do novo bairro saibam que, antes das casas, havia uma horta. E que naquela horta morava um pedaço da alma da cidade.

Enquanto isso, eu sigo passando por ali, com a impressão de que o vento, quando sopra, ainda procura o cheiro de hortelã que se perdeu ou das conversas das senhorinhas quando retiravam os seus maços de hortaliças.

Porque, no fim, não foi só a horta que arrancaram, foi o convívio, a partilha e o sentido de pertencimento, aquilo que marca a nossa “identidade”.

E isso, meu amigo, não se reconstrói com cimento!

 

Tiago Rafael dos Santos Alves

Professor da Rede Estadual de SP / FADAP/FAP – Tupã

Historiador – nº 0000486/SP

Gestor Ambiental: CREA-SP nº 5071624912

Mestre pelo PPGG-MP – FCT/UNESP

Doutorando pelo PGAD – FCE/UNESP

E-mail: tiagorsalves@gmail.com

 

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